A ascensão da tolerância, por Paulo Vitorino
Era um dia de Outono, no longínquo ano de 1761, em que um ato desesperado marcaria a vida não só do próprio, mas também, e de forma dramática, os destinos dos que lhe eram próximos.
A nossa evolução enquanto espécie parece uma subida meteórica até uma hegemonia planetária, aparentemente não contestada.
E é aparente, pois o nosso maior desafio tem vindo precisamente do relacionamento entre nós.
Ao longo de milénios, a convivência entre povos e entre civilizações tem sido um exercício de equilíbrio, pontuado por inúmeros confrontos que resultaram em muitos casos no desaparecimento de culturas e modos de vida, cujo sinais ténues da sua existência são apenas detetados em escavações arqueológicas ou em escritos que preservaram a sua memória.
É neste fervilhar evolucionista e multicultural que é relevante contemplar o papel que a tolerância teve, tem tido e terá para a nossa própria sobrevivência.
E para isso vou viajar para pleno século XVIII, para o tal ano de 1761, onde um acontecimento em torno de um jovem irá desencadear uma onda de intolerância que despertará a atenção de uma geração e perdurará como marco durante os séculos que se lhe seguirão.
Algures numa casa em Toulouse, onde é seguida a religião protestante, o jovem Marc-Antoine é encontrado morto.
Numa época e local em que o catolicismo é predominante e define muitas das regras da vida em sociedade, rapidamente surge no imaginário público um culpado pertencente à comunidade protestante.
Os acontecimentos que se seguiram elevam o que de pior pode surgir quando as ações são ditadas pela intolerância.
Calas era o apelido do jovem. O seu pai, Jean Calas, era um membro da comunidade local há mais de 30 anos e apesar da sua orientação religiosa ser diversa da vigente (professava a fé protestante), tinha exercido a sua atividade profissional de negociante e construído o círculo de convivência social num ambiente aparentemente pacífico.
Contudo, os meses que antecederam a morte do jovem Calas viram uma escalada de violência face à comunidade protestante que iriam culminar no suplício de Jean Calas na roda.
Jean Calas, com a ajuda da família e de amigos terá tentado disfarçar os sinais de suicídio, de modo a evitar a ostracização que a sociedade dava aos corpos e almas dos suicidas.
Num ambiente de intolerância, a procura de culpados fáceis e vulneráveis à ira da maioria tornou Jean Calas e a sua família num alvo fácil, sendo o argumento usado pela acusação o de que o suposto ato teria sido cometido para evitar que Marc-Antoine se convertesse ao catolicismo.
O julgamento irascível foi traduzido numa condenação à morte, precedida por tortura pública, numa expiação dos supostos atos de Jean Calas e numa tentativa de obter uma confissão forçada que implicasse outros membros da família e amigos.
Jean Calas sucumbiu na roda, mas não admitiu o que os seus carrascos queriam que admitisse, negando sempre que ele ou a família e amigos tivessem morto o jovem Calas.
As acusações contra a família e amigos acabaram por ser retiradas e a reabilitação da memória de Jean Calas pouco contribuiu para colmatar o que de horrível foi cometido durante todo este processo.
Este episódio sombrio chamou a atenção de François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, que sobre ele haveria de escrever uma obra que perdurou no tempo, defendendo a tolerância, não apenas religiosa, mas essencialmente como um modo de viver em sociedade e de sabermos reconhecer as nossas próprias limitações (“Tratado sobre a Tolerância”, 1763).
O acontecimento relatado retrata um episódio de intolerância religiosa, que muitas comunidades espelharam durante milénios, em que quem os praticou não eram, como a história nos ensinou, apenas católicos, mas abrangendo os diversos credos, sempre que se tentou impor aos outros um determinado sistema e visão do mundo.
Mas a intolerância religiosa é apenas uma face da intransigência em admitir que as nossas crenças, não só podem coexistir com outras diferentes, mas que também podem ser questionadas ou mesmo estarem erradas.
Felizmente que a nossa visão sobre a religião tem-se modificado ao longo destes últimos séculos e é atualmente vista (na maior parte dos casos) como um tema profundamente pessoal e dissociado dos assuntos de estado.
Contudo, as águas da intolerância correm mais fundo e ela revela-se sempre que impomos regras inflexíveis, forçando uma mímica comportamental aos outros, tendo como base as nossas crenças e abandonando qualquer critério de razoabilidade e equidade no relacionamento entre nós.
Mas alguém viu mais longe, numa época conturbada e em plena revolução francesa, deixou-nos uma mensagem.
Com uma visão que antecedeu em séculos o que os seus contemporâneos conseguiam perspetivar, e nos momentos mais difíceis da sua vida, deixou-nos uma mensagem construída com base num legado incalculável.
É importante compreendermos que o modo como reagimos à intolerância é feito de fronteiras esguias e muitas vezes ténues, e devemos estar atentos para não acabarmos nós próprios nas encostas dessa mesma intolerância.
Mas nem tudo está perdido.
Voltando novamente ao século XVIII, vamos encontrar Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, conhecido por Marquês de Condorcet, e a sua fé na evolução do espírito humano.
Sopravam os ventos repressores e persecutórios de um período da revolução francesa que ficou conhecido como o “grande terror”. Esta fase conturbada, em boa parte comandada por Robespierre, veio acompanhada de uma perseguição implacável aos seus opositores e a quem contestasse uma revolução mais radical.
Entre as alas dos girondinos, encontramos o Marquês de Condorcet, personalidade incontornável destes momentos marcantes da história da humanidade.
Após participar nos primórdios da revolução francesa, algumas das suas opiniões (entre as quais se contam a sua oposição à execução do Rei Luís XVI), levaram-no a tornar-se um alvo dos jacobinos, obrigando-o a esconder-se para se salvar.
Foi nesse ambiente obscuro, e em que acabou por se tornar um fugitivo, que surgiu uma obra que é marcante pelo seu otimismo, ainda mais se atendermos que foi escrita nos seus tempos de clandestinidade (“Tableau historique des progres de l’esprit humain”, publicado postumamente em 1795). Ficou como um símbolo e confiança na razão e no progresso da humanidade nos tempos vindouros. Retrospetivamente podemos conceder-lhe razão em muitos aspetos que à data em que foram escritos pareceriam implausíveis.
Condorcet foi contra a escravatura lutando pela sua abolição e pela liberdade como um princípio base para todos os seres humanos, escrevendo já em 1781 explicitamente sobre o tema da escravatura. Manifestou igualmente, há quase 225 anos, que o direito ao voto devia ser para todos e não apenas para os homens, tendo inclusive escrito uma obra sobre os direitos das mulheres em 1790.
A sua vida acabaria na prisão, onde, segundo algumas versões teria tirado a própria vida com veneno, evitando a execução pública que os seus opositores lhe estariam a preparar.
A perspetiva otimista que Condorcet quis delinear, e qualquer visão plena de esperança no mundo e no nosso próprio destino tem que obrigatoriamente incluir, se quisermos perdurar no tempo e espaço, a tolerância como um dos elementos essenciais da nossa sociedade e da nossa humanidade.
Mais, se noutras épocas e em outros lugares, atos de intolerância podiam não comprometer a nossa preservação enquanto espécie, tal já não é o cenário da nossa civilização que age globalmente, sendo imprevisível qual o panorama com o qual nos teríamos que deparar caso a intolerância voltasse a florescer.
Esta sociedade moderna, com uma herança milenar e uma memória recente dos acontecimentos que marcaram o século XX, tem que estar consciente que os impactos das suas ações facilmente extravasam e estendem-se de modo a abranger o mundo inteiro e todas as espécies com quem partilhamos este planeta.
E é precisamente por essa capacidade de comprometer o nosso futuro coletivo, que uma coexistência pacífica orientada por princípios de tolerância e respeito mútuos deve estar subjacente ao relacionamento entre seres humanos, entre estados e inclusive no nosso relacionamento com as outras espécies.
Como exercer essa tolerância, não é por si só uma tarefa fácil, mas dela vai depender o desenrolar da nossa presença e dos nossos descendentes neste ponto tão distante de tudo, exceto de nós próprios. Não deveremos querer que a nossa existência neste planeta seja uma história de ascensão e… queda da tolerância.
Paulo J. Vitorino