Inteligência Artificial (IA) no mundo jurídico, por Pedro Rocha

Chegou a Era do Direito sair do Papel e entrar no Código ou Algoritmo

A revolução tecnológica chegou ao mundo jurídico, e não se limita ao uso de software de gestão de processos ou à digitalização dos tribunais. A Inteligência Artificial (IA) está a alterar profundamente os fundamentos do Direito — e com isso, levanta desafios inéditos: pode um algoritmo ser responsabilizado? Quem responde por decisões automatizadas erradas? E como proteger direitos fundamentais num sistema em que as decisões são cada vez menos humanas?

Estas não são questões futuristas. São urgentes, actuais e profundamente jurídicas. Imagine um banco que recusa um empréstimo com base num sistema de IA. Ou uma seguradora que aumenta o prémio com base numa avaliação preditiva. Ou mesmo um sistema judicial que recomenda penas com base em padrões estatísticos — como já aconteceu nos EUA com o polémico software COMPAS. Em todos estes casos, o cidadão pode não perceber porquê — porque os algoritmos não explicam como “pensam”, e muitos são verdadeiras caixas negras. Isto viola princípios basilares do Direito, como o direito à transparência, ao contraditório e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa.

A legislação europeia já começou a enfrentar estes dilemas. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), no seu artigo 22.º, consagra o direito do titular a não ficar sujeito a uma decisão baseada exclusivamente em tratamento automatizado, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos significativos na sua esfera jurídica. Mais recentemente, a União Europeia aprovou o Artificial Intelligence Act (AI Act) — o primeiro regulamento do mundo inteiramente dedicado à regulação da IA, publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 2024. Este diploma classifica os sistemas de IA consoante o risco (inaceitável, elevado, limitado ou mínimo), proibindo práticas como manipulação subliminar, pontuação social à semelhança da China, ou sistemas de identificação biométrica em tempo real em espaços públicos. Em Portugal, o Projeto de Estratégia Nacional para a IA (AI Portugal 2030) prevê um uso ético e responsável da inteligência artificial, mas ainda com pouco reflexo concreto em legislação. A Lei n.º 58/2019, que assegura a execução do RGPD na ordem jurídica nacional, assume um papel instrumental, sobretudo no controlo das decisões automatizadas sobre dados pessoais.

A aplicação desregulada da IA pode conduzir a riscos sérios: discriminação algorítmica, por viés nos dados de treino; responsabilidade difusa — quem responde por erros, o programador, a empresa, o utilizador? — e falta de auditabilidade e explicabilidade, comprometendo a legalidade da decisão. A jurisprudência portuguesa ainda não enfrentou frontalmente estes casos, mas não tardará. O princípio da legalidade, o direito à informação e a proibição de decisões arbitrárias serão os principais campos de batalha. O desafio está lançado ao mundo jurídico: precisamos de juristas que compreendam a linguagem dos algoritmos, juízes capazes de questionar sistemas de IA, e legisladores que articulem inovação com direitos fundamentais.

O Direito não pode ser um espectador. Deve ser um garante da dignidade humana numa era de decisões artificiais. Como dizia Norberto Bobbio, “a era dos direitos” exige agora a era dos direitos no digital. Empresas e entidades públicas que usem IA devem garantir a explicabilidade das decisões, sob pena de violarem o RGPD e os direitos constitucionais. Os cidadãos têm o direito de contestar decisões automatizadas e exigir revisão humana. Os tribunais devem preparar-se para peritagens algorítmicas e novas formas de prova digital. E os advogados devem começar a incluir cláusulas específicas sobre IA nos contratos, regendo responsabilidade, transparência e controlo humano.

Chegou de facto, a era do Direito sair do papel e entrar no código, ou no algoritmo.

Dr. Pedro Carrilho Rocha – Advogado